“FAZE QUE EU VIVA E OBSERVE A TUA PALAVRA.”

Não se diz com todas as letras, mas o sentimento generalizado é que o outro é o nosso inferno. O ideal moderno parece ser viver, sofrer e vencer sozinho, sem ninguém por perto para encher o saco ou dividir o prêmio. A experiência do inferno parece não estar ligada à consciência de ter errado mas ao terror de ser corrigido/a. É proibido importar-se com a vida do outro, pois isso pode trazer incômodo. Assim, você decide e age com absoluta autonomia, e ninguém pode contestar sua decisão e sua ação. O inferno é sentido unicamente quando alguém ousa questionar seu comportamento, atitude ou ação. Não há lugar para a consciência do erro, nem para a culpa e a conversão. Mas não é isso que nos revela a Palavra de Deus, cujo mês abrimos hoje. Com o salmista, peçamos sinceramente: “Faze que eu viva e observe a tua Palavra!” (Sl 119/118,17). Não nos façamos de surdos/as e não tornemos duro nosso coração.
“Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, tu e ele a sós!”
Como pessoas humanas e como cristãos sabemos que somos ambíguos/as e que nossas comunidades não são uma sociedade de pessoas perfeitas. Na nossa genealogia comunitária temos pecadores convertidos como Pedro e Paulo. Temos ao nosso lado homens e mulheres cheios de boa vontade e de fé que tropeçam permanentemente nos próprios pés. E temos consciência das nossas próprias contradições pessoais, daquelas que são públicas e daquelas que escondemos a sete chaves.
Como cristãos não esquecemos daquilo que disse Jesus de Nazaré, nosso mestre e irmão primogênito: o Reino de Deus e a Igreja – seu gérmem e sinal – são como uma terra que recebeu boa semente mas que faz crescer misteriosamente ao lado dela o joio. É como uma rede lançada ao mar que arrasta para fora peixes bons e peixes maus. É como uma roça que tem trechos de terra dura e superficial, outros de terra pedregosa, outros infestados de espinhos e outros de terra boa.
 “Eu te coloquei como sentinela para casa de Israel.”
Mas isso não pode ser um incentivo à passividade e ao conformismo. Sabemo-nos permanentemente chamados à conversão. A cada dia a Palavra de Deus faz um “Raio X” da nossa vida. O próprio Deus nos encarrega da missão de despertar nos irmãos e irmãs a consciência dos erros e de mostrar-lhes os caminhos da reconciliação. E sem esquecer que não é possível apontar o cisco no olho dos outros quando somos incapazes de ver o lixo que infesta nossa vida.
O profeta Ezequiel experimentou isso de um modo radical. Ele se descobriu com a missão de ser como um vigia diante do seu povo. Sentiu-se chamado a denunciar o mal e abrir caminhos de conversão. Descobriu que, se calasse diante das injustiças cometidas no meio do seu povo, seria responsabilizado pelo mal que se abateria sobre os que a praticavam. Intuiu sua responsabilidade pela vida do seu povo. “É a você que eu pedirei contas pelo sangue dele...”
No evangelho, depois de ter dito que o caminho que leva ao seu reino é a acolhida aos pequenos e a atitude de criança; que é preciso evitar comportar-se como pedras no caminho dos pequenos; que Deus age como o pastor que, movido pelo amor pastoral, deixa em segundo lugar as 99 ovelhas que estão protegidas e sai à procura daquela que está em siatuação de risco, Jesus ordena à comunidade dos discípulos, célula-mãe da Igreja: “Se o teu irmão pecar, vá e mostre o erro dele...”
“Tudo o que ligardes na terra será ligado no céu...”
Estamos lembrados também do que Jesus dissera a Pedro, lá em Cesaréia de Filipe: “O que você ligar na terra será ligado no céu...” Sabemos que esse ministério é extensivo a todos aqueles/as que o reconhecem como Messias e seguem seus passos no anúncio, no testemunho e no serviço. Trata-se de continuar sua missão de recriar os laços, de aproximar as pessoas entre si e de Deus, de criar e fortalecer alianças, de renovar a face da terra na força do seu Espírito.
Creio que inguém de nós imagina que esta missão de ligar e desligar, de perdoar nossos irmãos e irmãs significa sair instalando confessionários em todos os cantos e, menos ainda, sentir-se dono das chaves e do poder de fechar ou abrir as portas mais ou menos arbitrariamente. Não significa também sair por aí com o dedo em riste, acusando publicamente os outros, especialmente quando não seguem a nossa cartilha ou não protegem nossas instituições.
A profecia, a correção fraterna e o perdão supõem um amor maduro e adulto ao próximo e ao povo, o empenho sério e responsável para recuperar a concórdia, a unidade e a vida plena para todos. O objetivo da correção não é punir daqueles que erram, nem construir a fama de quem denuncia ou defender de forma intransigente da doutrina que foi transgredida, mas a conversão e a reconciliação das pessoas e dos grupos sociais que experimentam tensões e divisões.
“Se ele te ouvir, terás ganho o teu irmão.”
O que Jesus nos propõe hoje não é um procedimento jurídico, mas uma pedagogia, um caminho. E o primeiro passo desse caminho é tomar a iniciativa de procurar discretamente aquele/a que nos atingiu ou prejudicou. Fazer isso com a atitude do pastor que vai ao encontro da ovelha que se perdeu e, quando a encontra, se alegra mais com ela que com as 99 que não cometeram nenhum erro (cf. Mt 16,12-14). “Se ele lhe der ouvidos, você terá ganho seu irmão.”
Quando essa iniciativa não for bem sucedida ainda não há razão para desistir ou denunciar publicamente. Jesus propõe um segundo passo: voltar ao errante com uma ou duas pessoas que ajudarão a convencê-lo do erro e servirão de testemunhas. Se a pessoa que agiu errado não aceitar esse segundo passo da correção fraterna, o terceiro passo é comunicar à comunidade eclesial, pois ela recebeu a responsabilidade ligar e desligar (cf. Mt 16,13-20).
Se a ruptura se mantiver, há um último passo: “Se nem mesmo à Igreja ele der ouvidos, seja tratado como se fosse um pagão ou um cobrador de impostos.” O que significa isso? Certamente não quer dizer lavar as mãos e, muito menos ainda, discriminar ou condenar! Para os/as discípulos/as de Jesus Cristo, pagãos e pecadores são terreno de missão, pessoas a serem convencidas por um trabalho missionário respeitoso, criativo e perseverante.
“Quem ama o próximo cumpre plenamente a lei.”
Tanto a conversão como o perdão supõem um dinamismo ou uma base de sustentação. E esse dinamismo se chama oração. A conversão – a nossa e a dos outros – deve ser cultivada no coração e buscada na oração. Acima de qualquer poder de ligar e desligar, ou de qualquer vontade de punir aqueles/as que erram está o desejo concórdia, o amor fraterno. Nada está acima disso: nem a doutrina da Igreja e seus interesses. “Quem ama o próximo cumpriu plenamente a lei”, diz São Paulo.
Algumas mudanças exigem muito, mas não são impossíveis. Por isso, Jesus conclui sua proposta pedagógica de correção fraterna sublinhando a importância da convergência de interesses e projetos na oração. “Se dois de vocês na terra estiverem de acordo sobre qualquer coisa que queiram pedir, isso lhes será concedido por meu Pai que está no céu.” Daí a necessidade de percorrer todos os passos indicados. Uma comunidade baseada na concórdia descobre sua força de reconciliação.
O amor e a concórdia não dispensam o senso de justiça, pois o amor pessoal aos indivíduos não pode contrariar o respeito à dignidade da maioria. É por respeito aos muitos que são prejudicados/as ou violentados/as pelos pecados de uns poucos que precisamos trabalhar pela conversão e levantar profeticamente a voz. O perdão vai sempre de mãos dadas com o reconhecimento dos erros e com o propósito de mudança. Precisamos ser sempre e ao mesmo tempo irmãos e vigias.
“Quem dera que hoje ouvísseis a Sua voz...”
Deus pai e mãe, tu inclinas o ouvido para ouvir nossos clamores e falas para orientar nossos passos.
Somos todos/as membros do teu povo, ovelhas do teu rebanho. Tua Palavra é luz que dá cor e sabor às nossas buscas e lâmpada no nosso caminhar. Por ela tu nos confias o dinamismo da reconciliação e nos ensinas que o amor e a veneração à nossa ‘pátria amada’ não podem ser colocados acima da sede de justiça e da concórdia que ultrapassam as fronteiras nacionais e políticas. Abre nossos ouvidos a esta Palavra de vida e faz da tua Igreja uma comunidade completamente empenhada na reconciliação dos homens e mulheres divididos por tantos muros. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

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