Quem já não experimentou aquela pesada sensação de que, por causas incompreensíveis e razões inexplicáveis, nossas amadas utopias e nossos projetos arrojados não dão certo? Quantas vezes nos perguntamos se os pequenos ensaios e experiências de um modo de viver evangélico não têm mais que um significado irrelevante na caminhada da humanidade? Muitas são as pessoas de fé que se perguntam pelo impacto fermentador da vida cristã nos rumos da história. São velhas perguntas que o próprio Cristo enfrentou. Mas as respostas que damos hoje precisam ser lúcidas e capazes de suscitar atitudes, opções e estratégias duradouras, coerentes e eficazes.
“Senhor, não semeaste boa semente no teu campo?”
Como a parábola do semeador, as três parábolas que estamos meditando hoje estão situadas no capítulo 13 do evangelho de Mateus e tratam do dinamismo do Reino de Deus. As parábolas não são propriamente apresentação de uma doutrina em linguagem popular, mas uma estratégia discursiva que envolve e compromete os ouvintes. E a primeira parábola de hoje supõe uma dúvida em forma de pergunta: o Reino inaugurado por Jesus Cristo é realmente uma boa semente?
A experiência secular das comunidades e dos militantes cristãos é de que, apesar de todos os esforços e bons propósitos, o resultado de tanto empenho é ambivalente, insuficiente e preocupante. Atitudes e práticas egoístas, discriminatórias, excludentes e violentas se espalham por todos os lados e crescem como tiririca até mesmo no interior da Igreja, sem falar nos movimentos sociais e políticos. Será que o Senhor não escolheu bem seus discípulos e discípulas? Ou será que seu projeto é falível?
Vozes se levantam, especialmente entre os pensadores liberais, questionando a bondade da própria semente da religião em geral e do Evangelho em particular. A infantilização e a dominação dos homens e mulheres, assim como a impostura e a conquista violenta, seriam conaturais a todas as religiões, e o cristianismo não seria uma exceção. E não haveria salvação para a humanidade fora do progresso científico e tecnológico, este sim, portador da liberdade emancipadora...
“Quando o trigo cresceu e as espigas começaram a se formar, apareceu também o joio.”
Jesus não se preocupa em pesquisar e debater a origem do mal que contamina as iniciativas e projetos humanos. Ele simplesmente diz que numa noite, “quando todos dormiam” um adversário semeou joio no meio do trigo. A ambiguidade tem suas raízes nas dimensões inconscientes do ser humano. A oposição faz parte da condição humana na história e coexiste com as boas iniciativas. Há um dinamismo que se opõe ao processo de libertação, mas é incapaz de impedir seu florescimento.
É interessante destacar que é apenas quando a boa semente do Reino se desenvolve que a presença do mal se faz notar. O mal que se opõe ao dinamismo libertador do Reino não é uma força absoluta, comparável ou superior ao bem. É uma força sempre relativa, identificável no confronto com os valores e práticas de Jesus Cristo e seus discípulos/as. Ela provoca confusão e nos rouba forças que poderiam ser empenhadas noutras coisas, mas não tem futuro.
Porém, precisamos nos mantermo vigilantes quando afirmamos que a Igreja é semente ou sacramento do Reino de Deus. Ela não está livre da ambiguidade e do pecado, nas suas diversas expressões, inclusive naquelas vestidas de uma aparente neutralidade e de um prudente silêncio diante das injustiças. A Igreja é também a roça de Deus e, apesar da boa semente que recebe, o joio aparece misteriosamente exatamente quando as espigas começam a se formar...
“Queres que vamos retirar o joio?”
O zelo pela casa de Deus às vezes provoca em nós uma santa ira, e então nosso desejo é pegar foices e facões e extirpar da sociedade a injustiça e da Igreja a ambiguidade, cortando o mal pela raiz. Esta seria uma solução relativamente fácil se o joio estivesse apenas no nosso exterior, se fôssemos pessoas incorruptíveis, sem ambivalências e sem contradições. Mas o integrismo costuma se mostrar irracional e violento, e segue o totalitarismo apenas alguns passos atrás...
Deus é indulgente na condução do mundo, como nos diz o livro da Sabedoria. O caminho é a paciência, é esperar que os frutos amadureçam e mostrem claramente a diferença. Ou seja: o juízo não é da nossa competência. A nós basta saber que o joio não terá o mesmo fim que o trigo, que o egoísmo e a injustiça não têm consistência, que o brilho e a estabilidade são reservados à solidariedade e à justiça. Ou será que isso não passa de romantismo e de passivismo?
“O Reino dos céus é como um grão de mostarda...”
Para dar uma resposta à pergunta que nos fizemos acima, Jesus propõe uma outra parábola, na qual contrapõe a notável pequenez da semente de mostarda ao arbusto frondoso que produz. Esta parábola é uma resposta às perguntas que frequentemente nos fazemos: será que o amor, a ternura e a compaixão não são ações insignificantes, pequenas e demasiadamente frágeis frente à injustiça e à opressão? Teremos que nos contentar em ser sempre uma minoria que age apenas reparam danos?
Para os grandes Roma, de Jerusalém e de todos os centros de poder, a semente do Reino é insignificante e sem futuro. Não faltam aqueles/as que, em nome da eficácia histórica, propõem uma Igreja mais forte e potente, capaz de medir forças ou negociar com os impérios de plantão. Mas a proposta de Jesus é outra: trata-se de crer na força dos fracos, na fecundidade invencível do amor solidário, no dinamismo revolucionário da profecia e do testemunho.
O poder costuma se impor e garantir a eficácia provocando medo, criando dependência, apropriando-se da vida dos pequenos. O amor vence e frutifica pela sua perseverança na capacidade de sofrer e de dar a vida. Em seus ramos há abrigo para os pássaros construir ninhos e multiplicar a vida. Não foi essa convicção que levou Bartolomeu de las Casas (+17.07.1566) e seus coirmãos a levantar destemidamente a voz contra os compatriotas espanhóis e a favor dos povos originários deste continente?
“O Reino dos céus é como o fermento...”
Mas a pergunta ressurge insistente: isso não foi sempre um romantismo inconsequente? Jesus ensaia a resposta a esta questo crítica a partir de uma experiência do mundo doméstico e feminino. Ele nos convida a aprender da ação silenciosa, escondida e demorada do fermento que a cozinheira mistura à farinha. Jesus sublinha que o fermento da fé no Reino precisa entrar em contato e perder-se na farinha. Ninguém ousaria afirmar que a ação do fermento é ineficaz!
Esta parábola do Reino completa o que naturalmente falta às anteriores. Cada parábola quer evidenciar um aspecto do dinamismo do Reino de Deus. Aquela do trigo e do joio nos chama à paciência e ao discernimento. A outra, da semente de mostarda, nos ensina a confiaça nos meios aparentemente pequenos e frágeis. E esta do fermento nos interpela ao engajamento lúcido e transformador, a misturar-se à massa, a gastar-se na ação de solapar as bases de impérios que excluem e matam.
Chamo a atenção para o caráter corruptor do fermento. Sob um certo ponto de vista, o fermento é um produto em decomposição, e a fermentação da farinha, assim como a da uva na fabricação do vinho, é um processo de corrupção, de decomposição. Assim, as práticas humanas que encarnam os valores do Reino devem “corromper” o tecido social que mantém o reino dos mais fortes e criar micro-organismos portadores de uma nova ordem social, geradores de novos homens e novas mulheres.
“O Espírito vem em socorro da nossa fraqueza...”
O reino de Deus é acolhida do Sopro de Deus e ação para que ele se transforme em vida no mundo e na Igreja. Como pessoas e como Igreja, nem sempre estamos dispostas/os a entrar no seu dinamismo, e meio a contra-gosto, pedimos “venha a nós o vosso Reino”. O Espírito de Deus precisa nos ajudar em nossa fraqueza e nos engajar na realização da vontade de Deus. Que o Espírito de Deus nos conduza a uma compreensão sempre mais profunda e a uma resposta consequente ao mistério do Reino de Deus.
Deus Pai e Mãe, senhor da roça e pastor do rebanho: ensina aos teus filhos/as e às Igrejas que anunciam teu Filho um zelo sábio e respeitoso; concede que descubramos o infinito e fecundo valor da minoridade; e dá-nos a coragem de perdermo-nos na luta, como fermento que transforma a massa, com a força do teu Espírito e da tua Palavra, sem medos e sem totalitarismos. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
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