ONDE ESTÁ NOSSO TESOURO TAMBÉM ESTÁ NOSSO CORAÇÃO.

Quase todos/as já fizemos a experiência de risco. Dando por descontado que viver é em si mesmo um perigo, sabemos o risco de iniciar um curso superior, de investir numa atividade nova, de apostar todas as cartas num determinado relacionamento afetivo. Quanto mais precioso nos parece o objeto, maior é a disposição para o sacrifício e menores são ponderações e receios. Para Jesus de Nazaré, a alegria contagiante de um ser humano excluído que recupera a cidadania representa um tesouro precioso e impagável, diante do qual tudo o resto parece lixo. Realizar a vontade do Pai e proporcionar vida abundante a todas as criaturas é seu alimento e seu tesouro. Qual é o bem supremo pelo qual estaríamos dispostas/os a hipotecar tudo, inclusive o nosso sossego e a própria vida?
 “Ensina-me ouvir para que eu possa governar...”
A escuta atenta, a compreensão profunda e a resposta engajada à Palavra de Deus é a base da sabedoria cristã. Sentindo-se limitado e incapaz de liderar seu povo, o contraditório rei Salomão pede a Deus que o ensine a ouvir, a fim de que aprenda a distinguir o bem do mal e possa governar seu povo com justiça. Ouvir os outros e ouvir a si mesmo/a com profundidade são atitudes que vão de mãos dadas, são os dois lados de uma mesma atitude.
Quem não experimenta dificuldades de orientar a própria vida e não se interroga sobre o rumo que deve tomar? A escuta responsável da Palavra de Deus é uma ajuda importante para bem conduzir tanto a vida pessoal como uma comunidade cristã. Trata-se, é claro, de uma Palavra que não está presa ao livro, mas que ressoa na vida e nos sinais dos tempos. E esta escuta não conduz de modo nehum à passividade: as pessoas que sabem escutar são também as mais capazes de iniciativa.
“O Reino do céu é como um tesouro escondido no campo...”
A Evangelho vem nos falando do mistério do Reino de Deus. Ele se parece com um semeador que, mesmo sabendo que parte da semente se perderá, não deixa de semear. É comparável também um plantador que, apesar de ter usado boa semente, é surpreendido pelo o capim que cresce junto com o trigo. É semelhante também à semente de mostarda: apesar de sua pequenez, está na origem de um apreciável arbusto. Seu dinamismo é comparável enfim ao fermento que desaparece na farinha.
Jesus nos apresenta hoje como modelo inspirador um trabalhador rural que encontra um precioso tesouro no campo do seu patrão. Ao encontrar o tesouro, o sujeito é tomado pela surpresa, pois não o procurava. Então ele o mantém escondido e, sem dizer nada a ninguém e cheio de alegria, se desfaz de tudo o que tem e compra o campo onde se escondia o tesouro. Para um simples empregado diarista, este é um negócio arriscado, e só se justifica pelo valor que o tesouro tem ao seus olhos.
“O Reino dos céus é como um negociante que procura pérolas...”
Um segundo personagem que Jesus nos apresenta como modelo é um comerciante de pérolas preciosas. Este sim está empenhado na procura de uma pérola de grande valor e, quando a encontra, vende todos os seus bens e compra tal pérola. Este parece um negócio um pouco mais seguro, mas é comparável ao anterior no que diz respeito à necessidade de vender tudo para realizá-lo. Em ambos os casos, a experiência de encontrar algo precioso desestabiliza e chama a arriscar.
Eis o desafio para os discípulos e discípulas de Jesus: tendo descoberto a preciosidade do Reino de Deus – o valor irredutível e impagável da liberdade e da vida digna de cada pessoa em sua singularidade, o horizonte deslumbrante de um mundo de irmãos e irmãs de fato – , hipotecar ou subordinar tudo o mais – reputação, carreira, bem-estar individual e até família e religião – em função desse bem maior. Deus não tem tempo para tratar de pequenos negócios conosco. É tudo ou nada. E já!
 “O Reino do céu é como uma rede lançada ao mar...”
Nosso batismo pressupõe esta opção de risco. Parece que poucas prssoas têm clara consciência disso, pois se não, como explicar o descompromisso com que muitos o celebram? Dá vontade de aumentar as exigências de preparação ou até interditar o batismo às pessoas que não acordam para o compromisso que ele implica. Mas o próprio Jesus ensina que o Reino de Deus é também semelhante a uma rede lançada ao mar, que recolhe peixes bons e peixes de qualidade questionável...
Como agentes da evangelização, precisamos prestar atenção à sabedoria dos pescadores. Primeiro, eles costumam se encantar mais com o mar que com as redes. Depois, sabem que não é sensato esperar que a rede recolha apenas peixes bons e apropriados para o consumo e o comércio; ela apanha peixes de todo tipo. O trabalho árduo e criterioso de separar peixes bons e peixes ruins não pode ser feito durante a pesca e em alto mar, mas vem depois.
“Quando a rede está cheia...”
Mas não tiremos conclusões apressadas e superficiais. Estre trabalho judicial não é de nossa responsabilidade, nem mesmo das nossas Igrejas. Antes de sermos pescadores somos peixes, e ninguém pode estar segura/o de sua própria qualidade. Deixemos ao fim dos tempos e aos anjos de Deus esta difícil tarefa de separar. Da nossa parte, avaliemos permanentemente a profundidade e a concretude prática da nossa adesão ao tesouro do Reino de Deus e continuemos a semeadura e a fermentação.
Quem poderá avaliar e saldar o mal que faz uma Igreja que prega um Deus que se recusa sentar-se à mesa com as/os pecadoras/es e prefere o distanciamento frio e nem sempre imparcial do juiz? O mal é ainda maior quando a própria instituição eclesial, na pessoa daqueles que deveriam ser pastores, age como poder judiciário rigoroso e implacável. As nuvens tenebrosas da inquisição se apresentavam de toga, ostentavam cruzes e participavam dos harmoniosos coros de canto gregoriano...
Mais uma vez,  não estou propondo a passividade e a inércia diante das vítimas dos poderes e relações injustas. Deixar a Deus o julgamento final não significa furtar-se ao imperativo de discernir evangelicamente os fatos e de dar voz ao grito profético. Enquanto caminhamos na história, é o corpo agredido ou desnutrido das vítimas que exerce o papel de julgar todas os projetos, instituições e poderes. No próprio corpo dos oprimidos está inscrita a sentença daquelas/es que os agridem.
“Como um pai de família que tira do seu baú coisas novas e velhas...”
Finalmente, não façamos deduções apressadas. As parábolas de Jesus não sustentam teses dualistas. Bem e mal não são dois princípios metafísicos ou substâncias equivalentes e em eterno confronto. Jesus não fala do mal enquanto substância, mas de pessoas que agem mal, ou seja: pessoas que se opõem à lógica do Reino de Deus. Em todos os casos, a última palavra é do amor de Deus e da justiça do Reino. Os peixes imprestáveis são jogados no lixo da história.
Jesus termina esta bela e exigente seção das parábolas do Reino perguntando-nos se compreendemos o que acaba de nos ensinar. A resposta afirmativa e voluntariosa dos discípulos não convence, como demonstrarão posteriormente os acontecimentos. O próprio fato de que tenha explicado as parábolas nesta meditação não me garante que as tenha compreendido existencialmente, que seu ensino esteja configurando realmente a minhas ações, relações e opções.
Jesus Cristo se compara a um doutor da lei que entrou na escola do Reino do céu: ele sabe vasculhar o baú da história e tirar dele coisas novas e velhas. E convida os discípulos e discípulas a fazerem o mesmo. Quem descobrir o tesouro do Reino e vendeu tudo para ficar com ele não pode se contentar com “aquela velha opinião formada sobre tudo”, com as “antigas lições, de morrer pela pátria e viver sem razões”. Repetir velhas verdades e princípios genéricos é muito pouco. E bastante perigoso.
“A minha porção é guardar tuas palavras...”
Deus Pai e Mãe, amante das criaturas e condutor da história: teu projeto de comunhão solidária de todas as criaturas é o presente mais precioso e a herança mais comprometedora que poderias nos entregar. Foram tantos os homens e mulheres que, no decorrer da história, venderam ou perderam tudo para ficar com este tesouro. Ezequiel Ramin (assassinado aos 24.07.1985) foi um deles. Dá-nos a alegre ousadia de investir tudo o que somos e temos neste sonho de igualdade e comunhão, de diversidade e libertação. Ajuda-nos a considerá-lo mais precioso que o ouro, mais delicioso que o mel, mais orientador que qualquer versão de GPS. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

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