O caminho espiritual da quaresma e as imagens que nos convidam a saboreá-lo em sua profundidade são magníficos: jejum, deserto e tentações; nuvem, medo, transfiguração, escuta; sede, encontro, água, fonte; trevas, cura, luz.... Como crianças que se deixam educar na fé, vamos pouco a pouco redescobrindo Jesus como pão da vida, como filho amado, como água viva, como luz do mundo. Jesus Cristo se apresenta hoje como luz que faz resplandecer a verdade e a beleza de todas as coisas. Ele nos lembra nosso parentesco com o pó e com o barro da terra e, assim, abre nossos olhos para que acreditemos nele, olhemos o mundo na sua perspectiva e nos engajemos na sua obra de preservar e promover a biodiversidade e a vida plena das suas criaturas.
“Não tomeis parte na obra estéril das trevas...”
Vivemos no século XXI, orgulhosos de nossa modernidade iluminada. O conhecimento emancipado expulsa o mistério para fora da arena do saber. Refletores potentes como a utilidade, a funcionalidade, a novidade, a neutralidade, a laicidade e a cientificidade parecem jogar luz sobre o mistério da vida e da morte. Pensamos ter deixado para trás a minoridade tutelada pela religião, resquício do obscurantismo medieval, e alcançado a maioridade iluminada, indiferente a tudo e livre de qualquer responsabilidade.
Na confusa passagem da organização tribal a uma monarquia embrionária, Jessé se orienta pelos esquemas culturais e sociais que dão destaque à aparência física e à posição na hierarquia. Quando reúne os filhos para apresentá-los como candidatos ao trono de Isarel, nem se lembra do filho caçula, mais afeito aos pastos que às escaramuças das armas. Como sempre, na mesa de festa e nos cumes do poder, não há lugar para os últimos. Isso não são trevas?
Um judeu nasce cego e pobre e deve mendigar para sobreviver. Ao mal fisico da cegueira se acrescenta a chaga social da pobreza. E o que dizer do mal espiritual de quem pensa que o mendigo cego e sua família são os únicos culpados por tudo isso? Parece que os próprios discípulos pensavam assim. E ai de quem ousa mudar esta condição natural e atuar contra os costumes e leis naturais que cimentam esta ordem social! “Este homem não pode vir de Deus... Nós sabemos que este homem é um pecador...”
“Não te impressiones com a sua aparência, com a sua grande estatura...”
Não precisamos fazer um grande esforço ou escrever muitas linhas para lembrar que em pleno mundo das luzes existem grandes contingentes humanos que vivem no escuro sub-mundo e têm negado o acesso à mesa dos bens por eles mesmos produzidos. E não faltam aqueles/as que, voltando as costas, fazem de conta que não estão vendo nada, ou, com o dedo em riste, os acusam como únicos responsáveis pelas próprias desgraças.
Que o sábio Samuel venha em nossa ajuda. Ele nos ensina que é preciso superar este velho e terrível modo de ver o mundo, esta visão que mede as coisas e pessoas segundo a força física, as aparências ou o lugar que ocupam na hierarquia. Diante dos filhos de Jessé, hierarquicamente ordenados para receber a unção do poder, Samuel ouve a voz que vinha das profundezas da sua humana condição: “Não se impressione com a aparência deles... O ser humano olha as aparências, mas Deus olha o coração...”
Despertado por esta voz que expressa um dos mais belos arquétipos da humanidade, Samuel abre os olhos e se recusa a participar daquilo que Paulo chama de “ação estéril das trevas”. Ele se dá conta de que havia um lugar vazio na mesa preparada para a festa. “Falta o menor... Não nos sentaremos à mesa enquanto ele não chegar...” O olhar de Deus é outro e seus caminhos são alternativos. E o seu Espírito repousa e age sobre o insignificante Davi, o menor, o esquecido e excluído.
“Eu vim a este mundo para provocar um julgamento...”
Este olhar outro e alternativo, diverso e inverso próprio de Deus e daqueles/as que nele acreditam se mostra de forma mais clara ainda em Jesus de Nazaré. Para ele, nem o cego mendigo nem sua pobre família são culpados de qualquer coisa. Jesus não explica as causas de sua cegueira, mas chama todos a tomar uma posição. “Temos que realizar as obras daquele que me enviou...” Estamos diante de uma pessoa necessitada que pede uma ação solidária, e não diante de alguém que precisa ser julgado.
Sendo quem é e agindo como age, Jesus se mostra luz que ajuda a discernir e compreender a realidade assim como ela é, boa ou má. “Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo...” Trata-se de ver a ausência dos últimos e chamá-los a ocupar os primeiros lugares, de recuperar a visão daqueles/as que não conseguem ver e de devolver-lhes a cidadania. E este discernimento não se resume a um ato puramente intelectual, mas tem seu arremate numa ação que recria a realidade.
Samuel agiu descartando os orgulhosos e destacando o humilhado. Jesus cura o cego, justifica sua família e afirma a culpa da elite religiosa. Ele age recorrendo aos recursos da terra e devolve a visão, a maioridade e dingidade àquele homem dependente. Agindo desse modo, Jesus questiona a ordem estabelecida e aqueles/as que a sustentam. As ideologias iluministas e as elites iluminadas se comprazem em culpar as vítimas e inocentar os algozes, mas Jesus desmascara estas mentiras cínicas.
“Porventura também nós somos cegos?”
É preciso ver o mundo com os olhos dos poetas e agir com a coragem dos profetas. Exercitar um olhar capaz de transcender as aparências e agir de modo a derrubar os muros construídos pela exclusão e mantidos pelo medo ou pela indiferença. Vencer o medo acomodador que nos leva a duvidar que existem pessoas e grupos excluídos. “Não acreditaram que ele tinha sido cego...” Exercitar este discernimento é uma missão urgente e permanente, extensiva a todo discípulo e discípula de Jesus Cristo.
É possível que as pessoas que pensam saber tudo e exaustivamente se revelem cegas e incapazes de ver as coisas em sua profundidade, nas suas verdadeiras dimensões. É evidente que esta cegueira não se restringe a alguns sistemas filosóficos que se apresentam como iluministas. Toda ideologia, instituição ou sistema fechado em si mesmo, com pretensões de totalidade, sejam eles partidos, nações, instituições, Igrejas ou academias tem vocação totalitária e, portanto, cai na tentação das práticas de exclusão.
Esta é a advertência que nos faz a CNBB: a cultura e as ideologias de dominação muitas vezes pervadem as ciências e os meios de comunicação, os quais apresentam meras hipóteses como se fossem dados consolidados, idolatrizam o conhecimento técnico e fazem promessas fantasiosas. “Por trás desta venda de ilusões não se esconderiam até segundas intenções de caráter mais político-ideologico, no sentido de distrair as atenções do povo das verdadeiras causas do seu sofrimentos imediatos...?” (CF 2011, n° 113).
“Procedei como filhos da luz...”
Paulo pede que nos comportemos como filhos da luz, e isso significa: ser bom com todos, lutar pela justiça, reestabelecer a verdade. Mas o ponto de partida é a auto-crítica: “Será que também somos cegos?” Trata-se de despertar da tranquilidade do nosso sono, como pede Paulo. E os passos seguintes levam a perseverar no caminho de Jesus de Nazaré, a pedir que ele abra nossos olhos, a assumir seu ponto de vista, a colaborar com sua ação libertadora. É isso que Martin Luther King procurou fazer, fiel ao Evangelho e soldário com seus irmãos negros, pagando esta ousadia com o martírio (+ 04.04.1968).
Mas este é um caminho cercado de ameaças e incompreensões. Aquele homem cego e mendigo que recuperou a capacidade de ver e discutir com as auoridades encurraladas enfrentou sentenças ferozes: “Você nasceu inteirinho no pecado e quer nos ensinar?” E o próprio Jesus, por ousar retirar o véu dos olhos do ceho e levantar o manto da exclusão que o vitimava, não tardou a ser carimbado como pecador. Não é novidade que também os terapeutas sociais de hoje sejam demonizados e execrados pela mídia.
Jesus, homem e profeta de Nazaré, tu nos ensinas que nunca termina de começar este caminho de abrir nossos olhos e ver as coisas na tua perspectiva. Abre nossos olhos, para que reconheçamos que tu és a Luz do mundo e vejamos a impotência e a dependência à qual são submetidos tantos irmãos e irmãs. Guia-nos a uma vida realmente sábia, caracterizada pela sabedoria que vê e acolhe a verdade, seja a de uma mulher da Samaria ou a de um mendigo anônimo. Ajuda-nos a encontrar no barro da terra a familiaridade que nos une a todas as tuas criaturas e restitui a vida tanto aos seres humanos como ao mundo animal, vegetal e mineral. E que os clamores sejam sempre de vitória e as dores sejam sempre de parto. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
Adorei a Idéia de ver a reflexão da homilia do domingo isso é um grande enriquecimento.
ResponderExcluirtania