ONDE ESTÁ NOSSO TESOURO TAMBÉM ESTÁ NOSSO CORAÇÃO.

Quase todos/as já fizemos a experiência de risco. Dando por descontado que viver é em si mesmo um perigo, sabemos o risco de iniciar um curso superior, de investir numa atividade nova, de apostar todas as cartas num determinado relacionamento afetivo. Quanto mais precioso nos parece o objeto, maior é a disposição para o sacrifício e menores são ponderações e receios. Para Jesus de Nazaré, a alegria contagiante de um ser humano excluído que recupera a cidadania representa um tesouro precioso e impagável, diante do qual tudo o resto parece lixo. Realizar a vontade do Pai e proporcionar vida abundante a todas as criaturas é seu alimento e seu tesouro. Qual é o bem supremo pelo qual estaríamos dispostas/os a hipotecar tudo, inclusive o nosso sossego e a própria vida?
 “Ensina-me ouvir para que eu possa governar...”
A escuta atenta, a compreensão profunda e a resposta engajada à Palavra de Deus é a base da sabedoria cristã. Sentindo-se limitado e incapaz de liderar seu povo, o contraditório rei Salomão pede a Deus que o ensine a ouvir, a fim de que aprenda a distinguir o bem do mal e possa governar seu povo com justiça. Ouvir os outros e ouvir a si mesmo/a com profundidade são atitudes que vão de mãos dadas, são os dois lados de uma mesma atitude.
Quem não experimenta dificuldades de orientar a própria vida e não se interroga sobre o rumo que deve tomar? A escuta responsável da Palavra de Deus é uma ajuda importante para bem conduzir tanto a vida pessoal como uma comunidade cristã. Trata-se, é claro, de uma Palavra que não está presa ao livro, mas que ressoa na vida e nos sinais dos tempos. E esta escuta não conduz de modo nehum à passividade: as pessoas que sabem escutar são também as mais capazes de iniciativa.
“O Reino do céu é como um tesouro escondido no campo...”
A Evangelho vem nos falando do mistério do Reino de Deus. Ele se parece com um semeador que, mesmo sabendo que parte da semente se perderá, não deixa de semear. É comparável também um plantador que, apesar de ter usado boa semente, é surpreendido pelo o capim que cresce junto com o trigo. É semelhante também à semente de mostarda: apesar de sua pequenez, está na origem de um apreciável arbusto. Seu dinamismo é comparável enfim ao fermento que desaparece na farinha.
Jesus nos apresenta hoje como modelo inspirador um trabalhador rural que encontra um precioso tesouro no campo do seu patrão. Ao encontrar o tesouro, o sujeito é tomado pela surpresa, pois não o procurava. Então ele o mantém escondido e, sem dizer nada a ninguém e cheio de alegria, se desfaz de tudo o que tem e compra o campo onde se escondia o tesouro. Para um simples empregado diarista, este é um negócio arriscado, e só se justifica pelo valor que o tesouro tem ao seus olhos.
“O Reino dos céus é como um negociante que procura pérolas...”
Um segundo personagem que Jesus nos apresenta como modelo é um comerciante de pérolas preciosas. Este sim está empenhado na procura de uma pérola de grande valor e, quando a encontra, vende todos os seus bens e compra tal pérola. Este parece um negócio um pouco mais seguro, mas é comparável ao anterior no que diz respeito à necessidade de vender tudo para realizá-lo. Em ambos os casos, a experiência de encontrar algo precioso desestabiliza e chama a arriscar.
Eis o desafio para os discípulos e discípulas de Jesus: tendo descoberto a preciosidade do Reino de Deus – o valor irredutível e impagável da liberdade e da vida digna de cada pessoa em sua singularidade, o horizonte deslumbrante de um mundo de irmãos e irmãs de fato – , hipotecar ou subordinar tudo o mais – reputação, carreira, bem-estar individual e até família e religião – em função desse bem maior. Deus não tem tempo para tratar de pequenos negócios conosco. É tudo ou nada. E já!
 “O Reino do céu é como uma rede lançada ao mar...”
Nosso batismo pressupõe esta opção de risco. Parece que poucas prssoas têm clara consciência disso, pois se não, como explicar o descompromisso com que muitos o celebram? Dá vontade de aumentar as exigências de preparação ou até interditar o batismo às pessoas que não acordam para o compromisso que ele implica. Mas o próprio Jesus ensina que o Reino de Deus é também semelhante a uma rede lançada ao mar, que recolhe peixes bons e peixes de qualidade questionável...
Como agentes da evangelização, precisamos prestar atenção à sabedoria dos pescadores. Primeiro, eles costumam se encantar mais com o mar que com as redes. Depois, sabem que não é sensato esperar que a rede recolha apenas peixes bons e apropriados para o consumo e o comércio; ela apanha peixes de todo tipo. O trabalho árduo e criterioso de separar peixes bons e peixes ruins não pode ser feito durante a pesca e em alto mar, mas vem depois.
“Quando a rede está cheia...”
Mas não tiremos conclusões apressadas e superficiais. Estre trabalho judicial não é de nossa responsabilidade, nem mesmo das nossas Igrejas. Antes de sermos pescadores somos peixes, e ninguém pode estar segura/o de sua própria qualidade. Deixemos ao fim dos tempos e aos anjos de Deus esta difícil tarefa de separar. Da nossa parte, avaliemos permanentemente a profundidade e a concretude prática da nossa adesão ao tesouro do Reino de Deus e continuemos a semeadura e a fermentação.
Quem poderá avaliar e saldar o mal que faz uma Igreja que prega um Deus que se recusa sentar-se à mesa com as/os pecadoras/es e prefere o distanciamento frio e nem sempre imparcial do juiz? O mal é ainda maior quando a própria instituição eclesial, na pessoa daqueles que deveriam ser pastores, age como poder judiciário rigoroso e implacável. As nuvens tenebrosas da inquisição se apresentavam de toga, ostentavam cruzes e participavam dos harmoniosos coros de canto gregoriano...
Mais uma vez,  não estou propondo a passividade e a inércia diante das vítimas dos poderes e relações injustas. Deixar a Deus o julgamento final não significa furtar-se ao imperativo de discernir evangelicamente os fatos e de dar voz ao grito profético. Enquanto caminhamos na história, é o corpo agredido ou desnutrido das vítimas que exerce o papel de julgar todas os projetos, instituições e poderes. No próprio corpo dos oprimidos está inscrita a sentença daquelas/es que os agridem.
“Como um pai de família que tira do seu baú coisas novas e velhas...”
Finalmente, não façamos deduções apressadas. As parábolas de Jesus não sustentam teses dualistas. Bem e mal não são dois princípios metafísicos ou substâncias equivalentes e em eterno confronto. Jesus não fala do mal enquanto substância, mas de pessoas que agem mal, ou seja: pessoas que se opõem à lógica do Reino de Deus. Em todos os casos, a última palavra é do amor de Deus e da justiça do Reino. Os peixes imprestáveis são jogados no lixo da história.
Jesus termina esta bela e exigente seção das parábolas do Reino perguntando-nos se compreendemos o que acaba de nos ensinar. A resposta afirmativa e voluntariosa dos discípulos não convence, como demonstrarão posteriormente os acontecimentos. O próprio fato de que tenha explicado as parábolas nesta meditação não me garante que as tenha compreendido existencialmente, que seu ensino esteja configurando realmente a minhas ações, relações e opções.
Jesus Cristo se compara a um doutor da lei que entrou na escola do Reino do céu: ele sabe vasculhar o baú da história e tirar dele coisas novas e velhas. E convida os discípulos e discípulas a fazerem o mesmo. Quem descobrir o tesouro do Reino e vendeu tudo para ficar com ele não pode se contentar com “aquela velha opinião formada sobre tudo”, com as “antigas lições, de morrer pela pátria e viver sem razões”. Repetir velhas verdades e princípios genéricos é muito pouco. E bastante perigoso.
“A minha porção é guardar tuas palavras...”
Deus Pai e Mãe, amante das criaturas e condutor da história: teu projeto de comunhão solidária de todas as criaturas é o presente mais precioso e a herança mais comprometedora que poderias nos entregar. Foram tantos os homens e mulheres que, no decorrer da história, venderam ou perderam tudo para ficar com este tesouro. Ezequiel Ramin (assassinado aos 24.07.1985) foi um deles. Dá-nos a alegre ousadia de investir tudo o que somos e temos neste sonho de igualdade e comunhão, de diversidade e libertação. Ajuda-nos a considerá-lo mais precioso que o ouro, mais delicioso que o mel, mais orientador que qualquer versão de GPS. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

Agenda CRB/Regional Brasília

04/08/2011 a 07/08/2011 – Curso de Extensão: Local: Casa de Retiro Assunção
                                        Módulo II: Espiritualidade e missão à luz da Palavra de Deus.

28/08/2011 – Chácara dos Salesianos – 8:00h às 17:00h
                        Dia do religioso(a) com oficinas temáticas.

24/09/2011 a 25/09/2011 – XXXVII Assembleia Regional

13/10/2011 a16/10/2011 – V Congresso de Psicologia – Brasília – D.F.

27/11/2011 a 04/12/2011 – Encontro da União Internacional de Superiores Gerais – Ap. do Norte –S.P



A SÁBIA PACIÊNCIA VAI DE MÃOS DADAS COM A SÉRIA URGÊNCIA.

Quem já não experimentou aquela pesada sensação de que, por causas incompreensíveis e razões inexplicáveis, nossas amadas utopias e nossos projetos arrojados não dão certo? Quantas vezes nos perguntamos se os pequenos ensaios e experiências de um modo de viver evangélico não têm mais que um significado irrelevante na caminhada da humanidade? Muitas são as pessoas de fé que se perguntam pelo impacto fermentador da vida cristã nos rumos da história. São velhas perguntas que o próprio Cristo enfrentou. Mas as respostas que damos hoje precisam ser lúcidas e capazes de suscitar atitudes, opções e estratégias duradouras, coerentes e eficazes.
“Senhor, não semeaste boa semente no teu campo?”
Como a parábola do semeador, as três parábolas que estamos meditando hoje estão situadas no capítulo 13 do evangelho de Mateus e tratam do dinamismo do Reino de Deus. As parábolas não são propriamente apresentação de uma doutrina em linguagem popular, mas uma estratégia discursiva que envolve e compromete os ouvintes. E a primeira parábola de hoje supõe uma dúvida em forma de pergunta: o Reino inaugurado por Jesus Cristo é realmente uma boa semente?
A experiência secular das comunidades e dos militantes cristãos é de que, apesar de todos os esforços e bons propósitos, o resultado de tanto empenho é ambivalente, insuficiente e preocupante. Atitudes e práticas egoístas, discriminatórias, excludentes e violentas se espalham por todos os lados e crescem como tiririca até mesmo no interior da Igreja, sem falar nos movimentos sociais e políticos. Será que o Senhor não escolheu bem seus discípulos e discípulas? Ou será que seu projeto é falível?
Vozes se levantam, especialmente entre os pensadores liberais, questionando a bondade da própria semente da religião em geral e do Evangelho em particular. A infantilização e a dominação dos homens e mulheres, assim como a impostura e a conquista violenta, seriam conaturais a todas as religiões, e o cristianismo não seria uma exceção. E não haveria salvação para a humanidade fora do progresso científico e tecnológico, este sim, portador da liberdade emancipadora...
“Quando o trigo cresceu e as espigas começaram a se formar, apareceu também o joio.”
Jesus não se preocupa em pesquisar e debater a origem do mal que contamina as iniciativas e projetos humanos.  Ele simplesmente diz que numa noite, “quando todos dormiam” um adversário semeou joio no meio do trigo. A ambiguidade tem suas raízes nas dimensões inconscientes do ser humano. A oposição faz parte da condição humana na história e coexiste com as boas iniciativas. Há um dinamismo que se opõe ao processo de libertação, mas é incapaz de impedir seu florescimento.
É interessante destacar que é apenas quando a boa semente do Reino se desenvolve que a presença do mal se faz notar. O mal que se opõe ao dinamismo libertador do Reino não é uma força absoluta, comparável ou superior ao bem. É uma força sempre relativa, identificável no confronto com os valores e práticas de Jesus Cristo e seus discípulos/as. Ela provoca confusão e nos rouba forças que poderiam ser empenhadas noutras coisas, mas não tem futuro.
Porém, precisamos nos mantermo vigilantes quando afirmamos que a Igreja é semente ou sacramento do Reino de Deus. Ela não está livre da ambiguidade e do pecado, nas suas diversas expressões, inclusive naquelas vestidas de uma aparente neutralidade e de um prudente silêncio diante das injustiças. A Igreja é também a roça de Deus e, apesar da boa semente que recebe, o joio aparece misteriosamente exatamente quando as espigas começam a se formar...
“Queres que vamos retirar o joio?”
O zelo pela casa de Deus às vezes provoca em nós uma santa ira, e então nosso desejo é pegar foices e facões e extirpar da sociedade a injustiça e da Igreja a ambiguidade, cortando o mal pela raiz. Esta seria uma solução relativamente fácil se o joio estivesse apenas no nosso exterior, se fôssemos pessoas incorruptíveis, sem ambivalências e sem contradições. Mas o integrismo costuma se mostrar irracional e violento, e segue o totalitarismo apenas alguns passos atrás...
Deus é indulgente na condução do mundo, como nos diz o livro da Sabedoria. O caminho é a paciência,  é esperar que os frutos amadureçam e mostrem claramente a diferença. Ou seja: o juízo não é da nossa competência. A nós basta saber que o joio não terá o mesmo fim que o trigo, que o egoísmo e a injustiça não têm consistência, que o brilho e a estabilidade são reservados à solidariedade e à justiça. Ou será que isso não passa de romantismo e de passivismo?
“O Reino dos céus é como um grão de mostarda...”
Para dar uma resposta à pergunta que nos fizemos acima, Jesus propõe uma outra parábola, na qual contrapõe a notável pequenez da semente de mostarda ao arbusto frondoso que produz. Esta parábola é uma resposta às perguntas que frequentemente nos fazemos: será que o amor, a ternura e a compaixão não são ações insignificantes, pequenas e demasiadamente frágeis frente à injustiça e à opressão? Teremos que nos contentar em ser sempre uma minoria que age apenas reparam danos?
Para os grandes Roma, de Jerusalém e de todos os centros de poder, a semente do Reino é insignificante e sem futuro. Não faltam aqueles/as que, em nome da eficácia histórica, propõem uma Igreja mais forte e potente, capaz de medir forças ou negociar com os impérios de plantão. Mas a proposta de Jesus é outra: trata-se de crer na força dos fracos, na fecundidade invencível do amor solidário, no dinamismo revolucionário da profecia e do testemunho.
O poder costuma se impor e garantir a eficácia provocando medo, criando dependência, apropriando-se da vida dos pequenos. O amor vence e frutifica pela sua perseverança na capacidade de sofrer e de dar a vida. Em seus ramos há abrigo para os pássaros construir ninhos e multiplicar a vida. NMas Não foi essa convicção que levou Bartolomeu de las Casas (+17.07.1566) e seus coirmãos a levantar destemidamente a voz contra os compatriotas espanhóis e a favor dos povos originários deste continente?
“O Reino dos céus é como o fermento...”
Mas a pergunta ressurge insistente: isso não foi sempre um romantismo inconsequente? Jesus ensaia a resposta a esta questo crítica a partir de uma experiência do mundo doméstico e feminino. Ele nos convida a aprender da ação silenciosa, escondida e demorada do fermento que a cozinheira mistura à farinha. Jesus sublinha que o fermento da fé no Reino precisa entrar em contato e perder-se na farinha. Ninguém ousaria afirmar que a ação do fermento é ineficaz!
Esta parábola do Reino completa o que naturalmente falta às anteriores. Cada parábola quer evidenciar um aspecto do dinamismo do Reino de Deus. Aquela do trigo e do joio nos chama à paciência e ao discernimento. A outra, da semente de mostarda, nos ensina a confiaça nos meios aparentemente pequenos e frágeis. E esta do fermento nos interpela ao engajamento lúcido e transformador, a misturar-se à massa, a gastar-se na ação de solapar as bases de impérios que excluem e matam.
Chamo a atenção para o caráter corruptor do fermento. Sob um certo ponto de vista, o fermento é um produto em decomposição, e a fermentação da farinha, assim como a da uva na fabricação do vinho, é um processo de corrupção, de decomposição. Assim, as práticas humanas que encarnam os valores do Reino devem “corromper” o tecido social que mantém o reino dos mais fortes e criar micro-organismos portadores de uma nova ordem social, geradores de novos homens e novas mulheres.
“O Espírito vem em socorro da nossa fraqueza...”
O reino de Deus é acolhida do Sopro de Deus e ação para que ele se transforme em vida no mundo e na Igreja. Como pessoas e como Igreja, nem sempre estamos dispostas/os a entrar no seu dinamismo, e meio a contra-gosto, pedimos “venha a nós o vosso Reino”. O Espírito de Deus precisa nos ajudar em nossa fraqueza e nos engajar na realização da vontade de Deus. Que o Espírito de Deus nos conduza a uma compreensão sempre mais profunda e a uma resposta consequente ao mistério do Reino de Deus.
Deus Pai e Mãe, senhor da roça e pastor do rebanho: ensina aos teus filhos/as e às Igrejas que anunciam teu Filho um zelo sábio e respeitoso; concede que descubramos o infinito e fecundo valor da minoridade; e dá-nos a coragem de perdermo-nos na luta, como fermento que transforma a massa, com a força do teu Espírito e da tua Palavra, sem medos e sem totalitarismos. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

MARIA, MÃE E MULHER SOLIDÁRIA AOS PÉS DA CRUZ.

Convocados pela Palavra de Deus e alimentada pela Eucaristia, como comunidade cristã nos reunimos para celebrar o mistério da páscoa de Jesus Cristo em nossa vida. Mesmo quando se trata de uma festa mariana, como hoje, a referência permanece a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Em Maria a presença compassiva, solidária e libertadora de Deus resplandece e frutifica de um modo particular. E quando a lembramos com o nome de Nossa Senhora do Carmo, logo vem à nossa lembrança a experiência da presença e proteção materna em todos os sofrimentos, e não somente aqueles do purgatório, nem na hora da nossa morte! Reunimo-nos para contemplar Maria, mulher e mãe corajosa, que permanece de pé junto aos crucificados de todos os tempos.
“Ele nasceu de uma mulher, submetido à Lei...”
As comunidades cristãs católicas têm grande apreço por Maria de Nazaré, a mãe de Jesus. Este apreço se expressa nos muitos nomes que lhe damos e nas infinitas invocações que lhe dirigimos. Sua humana santidade é tão sublinhada que às vezes corremos o risco de arrancá-la do seu lugar histórico – que é entre os fiéis, dentro da comunidade eclesial – e situá-la num nível sobre-humano. E uma piedade pouco realista acaba por separá-la de José e de Jesus, sem os quais não podemos entendê-la.
A teologia católica sublinha, e nós acreditamos sinceramente, que Maria é, acima de tudo, mãe e educadora de Jesus de Nazaré, nosso Senhor. Na carta aos Gálatas Paulo insiste que o Messias nasceu de uma mulher. Com essa afirmação, quer sublinhar que Deus entra no mundo partir de baixo, da periferia, pela porta dos fundos, na carne dos oprimidos. Maria representa a humanidade desprezada, a parte da humanidade que não conta. Esta é a porta pela qual Deus entra no mundo!
Paulo insiste também na revolução teológica e antropológica patentes no nascimento do Messias através de Maria. Este nascimento revela a plenitude dos tempos, o máximo que a história humana pode dar de si mesma, a mais alta manifestação de Deus. E essa manifestação revela um Deus que se faz presente nos pequenos e desprezados e com eles sofre o peso da lei dos mais fortes. Daí a nossa esperança: “Eu acredito que o mundo será melhor quando o menor qeue padece acreditar no menor”.
“Uma nuvenzinha, do tamanho de uma mão...”
O que a breve passagem da história do profeta Elias tem a ver com a festa de Nossa Senhora do Carmo? Antes de tudo, ela nos lembra a força da oração. Num tempo de estiagem e muitos outros problemas, o profeta sobe ao Monte Carmelo e se põe a rezar. A profundidade, a humildade e a confiança da sua oração se expressam na ação de inclinar-se até o chão. Sua oração não tem a marca de uma serenidade, mas não é alienada do mundo. É uma oração num contextode tensão e perseguição.
Mas a oração de Elias é uma oração que não desiste diante da falta de resultados. Elias segue rezando mesmo quando não aperece nenhum sinal e chuva. É interessante notar que a oração perseverante abre os olhos do profeta e o faz capaz de reconhecer e acreditar nos pequenos sinais. O aparecimento de uma minúscula nuvem o motiva a anunciar ao rei a Boa Notícia da chuva que está chegando e o move a sair correndo à frente do próprio mensageiro.
A tradição carmelitana vê nessa pequena nuvem o símbolo de Maria. “E a nuvem do altíssimo a cobrirá com sua sombra”, disse a ela o anjo. Na figura humilde e humana desta mulher da Galiléia Deus visita e liberta seu povo, levantando ou desdizendo toda ameaça de punição ou destruição. O precioso fruto que nasce do seu ventre fará com que uma multidão de homens e mulheres se convertam em profetas e profetizas destemidas. A mística da oração desabrocha e amadurece na coragem profética.
“Estavam junto à cruz...”
Contemplemos agora o vulto deMaria como no-lo apresenta o evangelista João. No lugar conhecido como colina das caveiras podemos ver três cruzes e três corpos pendentes. E, aos pés das cruzes, o vulto de três mulheres e um homem. Três cruzes, três mulheres, três Marias... É o que sobrou da comunidade dos/as discípulos/as depois da via-crucis. Dor, compaixão e esperança se misturam num turbilhão desordenado. Aqui, a oração de Maria é sua fidelidade e sua silenciosa presença junto aos crucificados.
Eis o lugar de Maria na história do povo de Deus: ela é a “mãe dos aflitos que estão junto à cruz”. No silêncio orante do seu aposento juvenil, através daquela resposta despojada – “Eu sou a serva do Senhor! Que se faça conforme sua Palavra” – a jovem de Nazaré começara sua missão de Mãe do Filho de Deus. De pé diante da cruz, acompanhada e sustentada por outras marias, a Maria de Nazarée se torna a mãe dos discípulos e discípulas.
Olhando para a mãe e para o seu discípulo mais amado, num gesto de amor tão humano que chega a ser divino, Jesus oferece o lugar que até então ele mesmo ocupava no coração de Maria ao seu amigo. Nele Jesus está confiando aos maternos cuidados de Maria todas/os aquelas/es que se tornariam discípulas/os. E dirigindo-se ao discípulo fiel e amigo, confia-lhe os cuidados de sua mãe, estabelecendo a comunidade eclesial como o lar e o lugar próprio de Maria.
“Você já não é escravo, mas filho...”
Aos pés da cruz, sob o testemunho de duas mulheres, nasce uma nova família: uma família que transcende os laços de sangue e supera as discriminações de gênero; uma família com a marca do Espírito que Jesus entrega ao Pai e ao mundo no alto da cruz. Este Divino Sopro suscita e sustenta nossos gemidos e murmúrios de homens e mulheres que experimentam um pouco assustados a dignidade de pessoas livres, a possibilidade de agir criativamente, o desejo de relações amistosas e solidárias.
Com Maria aprendemos que dizer “sim” à Palavra de Deus significa converter-se em seus servidores/as e servidores/as do seu povo e libertar-se de todas as escravidões que nascem no ventre do medo diante dos que têm poder. Mais ainda: é porque Jesus Cristo nos trata como amigos/as que livremente nos fazemos servos/as daqueles/as que amamos. A própria relação com Deus vem marcada pela amizade e pela confiança e não mais pelo temor.
Aos pés da cruz e dos/as crucificados/as, na companhia de Maria e das outras marias, descobrimos que todas/os somos discípulas/os amadas/os, irmãs/os de Jesus, filhas/as de Maria. O calvário se converte em ventre que dá à luz uma comunidade de mulheres e homens emancipadas/os, sementes de uma humanidade renovada e renovadora. A esta comunidade Jesus confia sua herança dizendo: “Filho, eis tua Mãe!” E, mais tarde: “Cuida do meu rebanho”.
“Eis aí o seu filho...”
Jesus nos entrega aos cuidados de Maria. O escapulário é um sinal que lembra esse cuidado materno, nossa devoção mariana e, ao mesmo tempo, o propósito de seguir os passos de Jesus com humildade e integridade, como as marias e o discípulo amado. Tenhamos presente que ele não é um amuleto com poderes fetichistas, mas um sinal que nos remete ao centro da fé: somos filhos/as e herdeiros/as de um Deus que ama apaixonadamente e incondicionalmente.
O agora beato João Paulo II nos deixou o seguinte testemunho: “Eu também levo no meu coração, há tanto tempo, o Escapulário do Carmo! Por isso, peço à Virgem do Carmo que ajude a todos os religiosos e religiosas do Carmelo e os piedosos fiéis que a veneram filialmente a crescer em seu amor e irradiar no mundo a presença desta Mulher do silêncio e da oração, invocada como Mãe da misericórdia, Mãe da esperança e da graça". Que Maria nos cubra com seu manto e nos mantenha de pé ao seu lado!
A ti volvemos nosso olhar e dirigimos nossa palavra, ó Mulher cheia de graça, Mãe da misericórdia, Advogada nossa. Ajuda-nos a não esquecer que também nós nascemos de mulher, frutos nem sempre benditos de ventres menosprezados. Ensina a toda a Igreja que te chama de Mãe as lições de vida e de fé que viveste em Nazaré, ao lado de Jesus e de José. Conduz os homens e mulheres consagrados pelos caminhos do teu filho, encorajando-os nas vias não sempre sacras e sustentado-os no dom total de si mesmos/as. Aceita-nos e educa-nos como filhos e filhas que teu Filho te confiou em testamento. Aceita nossa agradecida hospitalidade e vem morar conosco, como Mãe, Irmã e Mestra. E guarda nossos irmãos e irmãs do Carmelo sob o teu sagrado manto. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

ELES PERMANECERAM FIRMES COMO SE VISSEM O INVISÍVEL...

Depois de um mês cheio de memórias de santos populares, começamos julho festejando São Pedro e São Paulo. Como sempre, é preciso respeitar e partir da piedade popular, mas também escutar o testemunho das Escrituras e chegar à vida real, com suas possibilidades e desafios. Se é verdade que Pedro é o primeiro líder dos cristãos e Paulo é o apóstolo dos povos, não podemos esquecer que ambos, cada um a seu modo e a seu tempo, foram discípulos de Jesus e passaram por sucessivas crises e dificuldades, provaram a prisão e foram martirizados. Eles fazem parte daquela ‘nuvem de testemunhas’ da qual fala a Carta aos Hebreus (12,1): viveram e morreram firmes na fé, como se vissem o invisível (cf. Hb 11,13.27). Escutemos e acolhamos com reverência o testemunho destes nossos irmãos maiores, colunas que sustentam e vidas que interpelam as comunidades cristãs de hoje.
 “Enquanto Pedro era mantido na prisão...”
O primeiro Papa foi presidiário! Esqueçamos por um instante a cena contada por Mateus e centremos nossa atenção no acontecido narrado nos Antos dos Apóstolos. Herodes maltratava os cristãos e havia mandado matar à espada Tiago. Percebendo que isso agradava aos judeus, aproveitou para aumentar sua baixa popularidade e mandou prender Pedro, providenciou uma guarda competente e de confiança e permitiu-se festejar tranquila e cinicamente a páscoa judaica.
Para que serviam a Pedro as chaves prometidas por Jesus Cristo se não ajudavam a soltar as algemas que o prendiam ou abrir a porta da prisão, mantida sob rigorosa vigilância? Pedro estava imerso na penumbra destas e outras perguntas quando uma luz iluminou a cela, uma mão tocou seu ombro e uma voz ordenou que se levantasse depressa. As algemas que o prendiam caíram no chão, os guardas que vigiavam não viram nada e a porta que separava a cela da cidade se abriram sozinhas...
Em vez de centrar nossa atenção nos aspectos miraculosos, fixemo-nos na condição de vida de Pedro e dos demais irmãos na fé. Acusados publicamente, apedrejados nas praças, trancafiados nas prisões, degolados a fio de espada. Mas nada disso tinha o poder de calar a voz ou deter a ação. Que diferença de uma Igreja que faz o sucessor de Pedro desfilar no papa-móvel sob aclamações como ‘Cristo venceu, Cristo reina, Cristo impera’ e procura protegê-lo hermeticamente das críticas da imprensa. Às vezes penso que o sucessor de Pedro é prisioneiro da própria Cúria e suas tradições...
“Chegou o tempo da minha partida...”
Paulo, por sua vez, foi denunciado, perseguido, encarcerado e finalmente executado. Depois de ter sido um fariseu zeloso e violento e de ter acumulado muitos méritos e honras por causa disso, Paulo fez a experiência de ser conquistado por Jesus Cristo e, diante do bem supremo desta acolhida gratuita e imerecida, considerou tudo o mais como lixo e déficit na contabilidade da vida (cf. Fil 3,1-14) e se lançou incansavelmente no anúncio desta boa notícia, especialmente às pessoas de origem pagã.
O zelo e o ardor que Paulo demonstrara pelo judaísmo se transformou em zelo pela fé em Jesus Cristo. Mas isso provocou desconfiança por parte dos próprios cristãos e ódio por parte dos seus irmãos judeus. Para resumir esta história que conhecemos bem, depois de sucessivos enfrentamentos e perseguições, Paulo também acabou na prisão. Sendo cidadão romano, exigiu o direito de ser julgado decentemente em Roma, e para lá foi conduzido.
Mas ninguém conseguiu colocar sob algemas aquilo que o fazia livre: a Boa Notícia de Jesus Cristo. “Por ele, eu tenho sofrido até ser acorrentado como um malfeitor. Mas a Palavra de Deus não está acorrentada” (2Tm 2,9). Paulo sabia muito bem em quem colocara sua confiança, não se envergonhava de compartilhar a sorte dos encarcerados e pedia que ninguém se envergonhasse dele ou de testemunhar a favor de Jesus Cristo, que também foi preso e condenado (cf. 2Tm 1,8).
“A Igreja orava continuamente a Deus por ele.”
Pedro e Paulo são filhos, irmãos e pais da fé numa Igreja que confirmou com a vida aquilo que anunciou com as palavras. De um lado, Pedro, Paulo e os demais cristãos detidos mantinham contato com as suas comunidades de base, inclusive através de cartas às suas principais lideranças; de outro, as comunidades não ficavam indiferentes, apesar da crise de fé provocada por uma perseguição feita em nome de Deus e da religião e dos riscos políticos e sociais que que estas relações implicavam.
O vínculo entre a comunidade dos discípulos e discípulas e seus líderes presos se mostra de um modo singelo e comovente no relato dos Atos dos Apóstolos. “Enquanto Pedro era mantido na prisão, a Igreja orava continuamente por ele.” Um pouco antes, quando Pedro e João haviam sido liberados da prisão, a comunidade pedia em oração: “Agora, Senhor, olha as ameaças que fazem, e concede que teus servos anunciem corajosamente a tua Palavra” (At 4,29). A Igreja pede coragem, e não tranquilidade.
Pedro faz a profunda experiência da presença fiel de Deus na prisão. Saindo do cárcere, vai à casa da mãe de João Marcos, onde a comunidade estava reunida em oração. Quando Rosa, a mãe de Marcos, abre a porta e vê que é Pedro, é tomada de tamanha alegria que o deixa plantado do lado de fora e vai anunciar à comunidade reunida, e esta pensa que Rosa está doida. Aberta a porta, Pedro entra e conta entusiasmado o que havia acontecido, e depois recolhe-se num lugar escondido.
“Tu és o Messias, o Cristo, o Filho do Deus vivo!”
O que sustenta as Igrejas e comunidades cristãs é o encontro com Deus em Jesus Cristo. O que o evangelho de hoje nos propõe é substancialmente isso. Num lugar marcado pela influência e pelo domínio estrangeiro (a cidade se chamava Cesaréia e depois Neronias!!!), Jesus faz uma pergunta, que é central no terceiro bloco narrativo de Mateus (11,2-16,20). E esta é a primeira vez que um discípulo o reconhece e proclama Messias, embora um pouco antes, depois da tempestade acalmada, todos os discípulos haviam proclamado, de joelhos: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus” (Mt 14,33).
Não esqueçamos que, mesmo sem rejeitar a confissão de Pedro e dos demais discípulos, Jesus chama a si mesmo Filho do Homem, e não  Filho de Deus (cf. Mt 11,19; 12,8; 12,32), acentuando assim seus vínculos com a humanidade. Só quem está aberto e sintonizado com a lógica de Deus pode reconhecer a presença de Deus nas ações e palavras deste filho da humanidade e irmão de todos os seres humanos, e esta é a base sólida sobre a qual Jesus Cristo constrói a comunidade cristã, literalmente, a assembléia dos chamados. “Não foi um ser humano que te revelou isso...”
Da experiência de fé e da adesão a Jesus Cristo brota a missão. As lideranças e comunidades que conseguem dar este passo recebem as chaves do Reino de Deus, ou seja: a missão de continuar a tarefa libertadora de Jesus. A imagem das chaves e a metáfora ligar-desligar estão relacionadas a esta missão de construir o Reino de Deus na perspectiva das Escrituras e do caminho trilhado e proposto por Jesus Cristo, enfrentando conflitos mas jamais sucumbindo. Quem recebe as chaves da porta do Reino de Deus não teme as portas do inferno. Até a prisão pode ser uma oportunidade de evangelização...
“O Senhor veio em meu auxílio e me deu forças.”
Crer, confiar, partilhar e anunciar: estes são os verbos essenciais da gramática dos cristãos. Só chega à meta estabelecida quem conjuga estes verbos em todos os tempos, modos e pessoas e percorre estas etapas. Escrevendo a Timóteo desde a cela da prisão, Paulo faz um balanço da sua vida e suas palavras são eloquentes e comoventes: “Chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé.” Um pouco antes, havia escrito: “Estou suportando também os sofrimentos presentes, mas não me envergonho. Sei em quem acreditei” (2Tm 1,12).
Os santos e santas são filhos da Igreja, os mais belos entre seus frutos: profetas, mártires, confessores/as, construtores/as de uma terra renovada na qual a Justiça faz morada (cf. 2Pd 3,13). Mas são também pais e mães da Igreja, gente que aceita gerar no sofrimento e na alegria uma assembléia de irmãos e irmãs, de homens e mulheres convocados/as e convocadores/as, amigos/as entre si e solidários/as com todas as vítimas e sofredores, em permanente ritmo de missão.
A glória dos santos e santas não vem dous milagres mais ou menos forçados ou das honras e aplausos encomendados, mas do Deus vivo, e por isso os humildes que os vêm podem se alegrar. Quem reconhece o Filho de Deus encarnado na humanidade não está livre das dificuldades, mas sabe que “o anjo de Deus acampa em volta dos que o temem”, como diz o Salmo. Por isso, feliz a pessoa que nele crê e espera: viverá firme como quem vê o invisível.
Pe. Itacir Brassiani msf

NOSSO DEUS TEM UM CORAÇÃO GRANDE E COMPASSIVO.

A tentação de imaginar Deus de forma abstrata e de propor a mensagem cristã de forma estritamente doutrinal está sempre nos rondando. O princípio de um Deus uno e trino celebrado na festa da Trindade pode virar uma questão de matemática ou metafísica. A boa notícia recordada pela solenidade de Corpus Christi pode descambar em uma discussão polêmica e fisicista. E acabamos representando o mistério de Deus mediante figuras abstratas ou ameaçadoras, como o triângulo, a lei, o olho. Até a cruz corre o risco de passar uma idéia parcial e doentia de um Deus sedento de sacrifícios. Imagens como o cordeiro, a mesa, o pastor e o coração não seriam mais adequadas? Na festa do Sacrado Coração de Jesus recordamos agradecidos/as que nosso Deus tem um grande coração, um coração humano e humanizador.
“Procurarei a ovelha perdida, reconduzirei a desgarrada, emfaixarei a quebrada...”
De certo modo, a maior parte da humanidade vive em uma situação de exílio e de dispersão. Exílio, dispersão, fratura, falta de referência e de horizonte,  sentimento de vazio e de carência não supõem necessariamente transgressão ou culpa. Trata-se mais de uma situação, da condição humana na história. Somos sempre menos do que desejamos ser. Nossos passos e projetos nem sempre nos levam à meta que nos atrai. Este é o chão no qual Deus vem ao nosso encontro e se deixa experimentar.
Cresce sempre mais a cosciência da nossa congênita vulnerabilidade: somos como ovelha que se perde do rebanho e se torna presa fácil da voracidade dos lobos; como rebanho que, na busca de pastagens cada vez mais raras e inacessíveis, é surpreendido pela escuridão da noite em pleno deserto; como ovelha que se descobre abandonada ou manipulada por aqueles que deveriam ser seus pastores e defensores. Esta é a terra na qual Deus vem nos procurar.
Ao peso inerente à condição humana se acrescenta o fardo produzido por um modo de vida que considera a pessoa humana o lobo do outro, por sistemas que geram ovelhas fortes e gordas às custas do trabalho e da desnutrição de outras, por decisões que priorizam a fabricação de armas de guerra em detrimento do cultivo de alimentos para o bem comum. Infelizmente é incontável a multidão daqueles/as que seguem errantes e indefesos, cansados/as e abatidos/as como ovelhas sem pastor...
“Quando éramos inimigos de Deus...”
Às vezes esta situação de dispersão, abandono e risco é agravada também pelas imagens de Deus veiculadas pelas religiões e ideologias. Precisamos superar as imagens abstratas, parciais e distorcidas de Deus. Que consolação podemos encontrar naquela representação de Deus como um triângulo composto de linhas e ângulos absolutamente simétricos mas carentes de vida? Que orientação pode nos vir de conceitos herméticos como união hipostática, duas pessoas em uma natureza?
Algumas escolas de teologia e espiritualidade fizeram esforços significativos na tarefa de trazer a noção de Deus para dentro da cultura moderna. Mas o que significa concreta e existencialmente conceitos como Absoluto, Transcendente, Divindade? Correm o risco de passar mensagens ambíguas ou incompletas como os antigos conceitos de Altíssimo, Onipotente e Senhor. E às vezes não fazem outra coisa que cavar um abismo entre Deus e ser humano...
“Fortalecerei a ovelha doente e vigiarei a ovelha gorda e forte.”
A Sagrada Escritura nos apresenta a imagem de um Deus vivo e caracterizado pela Compaixão, e é isso que a solenidade do Sagrado Coração de Jesus quer colocar em evidência. Não precisamos ter medo de reconhecer traços antropomórficos em nossas imagens de Deus. Nunca nos livraremos disso. O que precisamos evitar é de projetar na idéia de Deus elementos de uma antropologia que exclui aspectos fundamentais como a corporeidade, a relação, o sentimento e a solidariedade.
Quando a tradição bíblica nos apresenta Deus como pastor, está destacando a compaixão, o cuiadado, a proteção e a orientação que o caracterizam. Via de regra, Deus realiza este modo de ser mediante os homens e mulheres que chama para tomar conta dos seus semelhantes. E, segundo o profeta Ezequiel, se trata de se colocar no meio do povo, inclusive nos lugares em que estão exilados; de resgatá-lo das mãos daqueles que o dominam; de conduzi-lo a um lugar no qual se sinta em casa e  tenha boas condições de vida; de criar condições para que tenha o necessário repouso; de cuidar das ovelhas fracas e doentes; de vigiar para que as ovelhas fortes e gordas não dominem sobre as demais.
“A prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores.”
A solenidade de hoje quer sublinhar que Deus tem um rosto humano, um coração que ama apaixonadamente a humanidade. Convicto de que as dificuldades levam à perseverança e à virtude, que, por sua vez, desabrocha na esperança, Paulo insiste que Cristo deu sua vida por nós, sem levar em conta nossas fraquezas e impiedades. É difícil encontrar alguém que queira dar a vida por uma pessoa boa e meritória, mas “Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores...”
Esta é a prova de que Deus nos ama, diz Paulo. Seu amor não se conjuga apenas no tempo passado e no tempo futuro, mas também no tempo presente, e em todos os modos e pessoas. Mais que conceito, princípio, idéia ou equação, Deus é coração humano e humanizador. E é nisso que se baseia a firme esperança de que nosso destino é a plenitude feliz e não a nulidade vazia, assim como nossa certeza de que os oprimidos e excluídos serão conduzidos a uma situação de vida em abundância.
“Deixa as noventa e nove e vai atrás daquela que se perdeu...”
A imagem do pastor bom ajuda a compreender por quem é que bate o coração de Deus. Com a parábola do bom bastor Jesus responde aos fariseus que o acusam de ter um coração demasiadamente generoso e de ser ingênuo com os pecadores e publicanos. Por definição, os fariseus são o grupo de judeus que se consideram justificados pela própria condição ou pelo cumprimento literal e cego de algumas prescrições legais e, por isso, se separam e tomam distância dos mortais e comuns.
Diante dos fariseus, Jesus faz questão de afirmar com palavras e ações que Deus não se alegra com os puros e separados. Para ele, uma só daquelas criaturas vistas como perdidas, desorientadas, em situação de risco, à margem do sistema religioso e político judaico, vale mais que noventa e nove crentes auto-indulgentes e separados. É por isso que, como um verdadeiro e bom bastor, Jesus vai em busca dos últimos, sem cansar e sem levar em conta se merecem ou não seu amor.
O coração de Jesus bate forte pelos últimos da escala social, pelas pessoas arruinadas por causa de escolhas mal feitas ou de sistemas que excluem. Longe de cair na armadilha de uma generosidade ingênua, Deus escolhe muito bem aqueles a quem dirige seu amor preferencial e ocupam um lugar nobre no seu coração. Ele vai premurosamente ao encontro dos perdidos, reconduz os desgarrados, cura os machucados, fortalece os doentes e vigia atentamente os fortes.
“Alegrai-vos comigo!”
Deus nos livre da auto-justificação, do sentimento de superioridade moral e espiritual, do distanciamento e da indiferença em relação aos pobres e sofredores. É terrivelmente anti-cristã a presunção de que é a pureza das intenções e a nobreza das atividades espirituais desenvolvidas por religiosos/as e sacerdotes que alegra a Deus. Não é possível conjugar o sentimento de superioridade e a atitude de separação e desprezo dos outros com a fé em Jesus Cristo.
Mais que na celebração de cultos solenes, na elaboração de doutrinas eruditas e na obediência formal a leis minuciosas, a alegria de Deus consiste em buscar e proteger as pessoas indefesas e ameaçadas e preparar para elas uma mesa farta bem na cara dos inimigos que as perseguem implacavelmente. E isso na proporção de 1 por 99! Este é o caminho e a proposta de Jesus. Não deveria ser outro o caminho das Igrejas e de todos/as aqueles/as que crêem que Deus tem um coração.
Uma solenidade como esta do Sagrado Coração de Jesus restaura nossas forças de discípulos/as e missionários/as e nos guia pelo caminho certo. Com o rosto ungido pelo óleo perfumado que nos protege contra o calor ardente dos desertos, deixemos a igreja com o firme propósito de prosseguir a caminhada , certos/as de que a graça e a felicidade nos acompanham como guarda-costas. E alegres porque o Deus em quem acreditamos não é uma lei, mas um coração.
Pe. Itacir Brassiani msf

Vídeo do Curso de Extensão promovido pela CRB de Brasília

E ae pessoal, confiram o vídeo com nossas fotos do Curso de Extensão que fizemos em março.