NOSSO DEUS TEM UM CORAÇÃO GRANDE E COMPASSIVO.

A tentação de imaginar Deus de forma abstrata e de propor a mensagem cristã de forma estritamente doutrinal está sempre nos rondando. O princípio de um Deus uno e trino celebrado na festa da Trindade pode virar uma questão de matemática ou metafísica. A boa notícia recordada pela solenidade de Corpus Christi pode descambar em uma discussão polêmica e fisicista. E acabamos representando o mistério de Deus mediante figuras abstratas ou ameaçadoras, como o triângulo, a lei, o olho. Até a cruz corre o risco de passar uma idéia parcial e doentia de um Deus sedento de sacrifícios. Imagens como o cordeiro, a mesa, o pastor e o coração não seriam mais adequadas? Na festa do Sacrado Coração de Jesus recordamos agradecidos/as que nosso Deus tem um grande coração, um coração humano e humanizador.
“Procurarei a ovelha perdida, reconduzirei a desgarrada, emfaixarei a quebrada...”
De certo modo, a maior parte da humanidade vive em uma situação de exílio e de dispersão. Exílio, dispersão, fratura, falta de referência e de horizonte,  sentimento de vazio e de carência não supõem necessariamente transgressão ou culpa. Trata-se mais de uma situação, da condição humana na história. Somos sempre menos do que desejamos ser. Nossos passos e projetos nem sempre nos levam à meta que nos atrai. Este é o chão no qual Deus vem ao nosso encontro e se deixa experimentar.
Cresce sempre mais a cosciência da nossa congênita vulnerabilidade: somos como ovelha que se perde do rebanho e se torna presa fácil da voracidade dos lobos; como rebanho que, na busca de pastagens cada vez mais raras e inacessíveis, é surpreendido pela escuridão da noite em pleno deserto; como ovelha que se descobre abandonada ou manipulada por aqueles que deveriam ser seus pastores e defensores. Esta é a terra na qual Deus vem nos procurar.
Ao peso inerente à condição humana se acrescenta o fardo produzido por um modo de vida que considera a pessoa humana o lobo do outro, por sistemas que geram ovelhas fortes e gordas às custas do trabalho e da desnutrição de outras, por decisões que priorizam a fabricação de armas de guerra em detrimento do cultivo de alimentos para o bem comum. Infelizmente é incontável a multidão daqueles/as que seguem errantes e indefesos, cansados/as e abatidos/as como ovelhas sem pastor...
“Quando éramos inimigos de Deus...”
Às vezes esta situação de dispersão, abandono e risco é agravada também pelas imagens de Deus veiculadas pelas religiões e ideologias. Precisamos superar as imagens abstratas, parciais e distorcidas de Deus. Que consolação podemos encontrar naquela representação de Deus como um triângulo composto de linhas e ângulos absolutamente simétricos mas carentes de vida? Que orientação pode nos vir de conceitos herméticos como união hipostática, duas pessoas em uma natureza?
Algumas escolas de teologia e espiritualidade fizeram esforços significativos na tarefa de trazer a noção de Deus para dentro da cultura moderna. Mas o que significa concreta e existencialmente conceitos como Absoluto, Transcendente, Divindade? Correm o risco de passar mensagens ambíguas ou incompletas como os antigos conceitos de Altíssimo, Onipotente e Senhor. E às vezes não fazem outra coisa que cavar um abismo entre Deus e ser humano...
“Fortalecerei a ovelha doente e vigiarei a ovelha gorda e forte.”
A Sagrada Escritura nos apresenta a imagem de um Deus vivo e caracterizado pela Compaixão, e é isso que a solenidade do Sagrado Coração de Jesus quer colocar em evidência. Não precisamos ter medo de reconhecer traços antropomórficos em nossas imagens de Deus. Nunca nos livraremos disso. O que precisamos evitar é de projetar na idéia de Deus elementos de uma antropologia que exclui aspectos fundamentais como a corporeidade, a relação, o sentimento e a solidariedade.
Quando a tradição bíblica nos apresenta Deus como pastor, está destacando a compaixão, o cuiadado, a proteção e a orientação que o caracterizam. Via de regra, Deus realiza este modo de ser mediante os homens e mulheres que chama para tomar conta dos seus semelhantes. E, segundo o profeta Ezequiel, se trata de se colocar no meio do povo, inclusive nos lugares em que estão exilados; de resgatá-lo das mãos daqueles que o dominam; de conduzi-lo a um lugar no qual se sinta em casa e  tenha boas condições de vida; de criar condições para que tenha o necessário repouso; de cuidar das ovelhas fracas e doentes; de vigiar para que as ovelhas fortes e gordas não dominem sobre as demais.
“A prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores.”
A solenidade de hoje quer sublinhar que Deus tem um rosto humano, um coração que ama apaixonadamente a humanidade. Convicto de que as dificuldades levam à perseverança e à virtude, que, por sua vez, desabrocha na esperança, Paulo insiste que Cristo deu sua vida por nós, sem levar em conta nossas fraquezas e impiedades. É difícil encontrar alguém que queira dar a vida por uma pessoa boa e meritória, mas “Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores...”
Esta é a prova de que Deus nos ama, diz Paulo. Seu amor não se conjuga apenas no tempo passado e no tempo futuro, mas também no tempo presente, e em todos os modos e pessoas. Mais que conceito, princípio, idéia ou equação, Deus é coração humano e humanizador. E é nisso que se baseia a firme esperança de que nosso destino é a plenitude feliz e não a nulidade vazia, assim como nossa certeza de que os oprimidos e excluídos serão conduzidos a uma situação de vida em abundância.
“Deixa as noventa e nove e vai atrás daquela que se perdeu...”
A imagem do pastor bom ajuda a compreender por quem é que bate o coração de Deus. Com a parábola do bom bastor Jesus responde aos fariseus que o acusam de ter um coração demasiadamente generoso e de ser ingênuo com os pecadores e publicanos. Por definição, os fariseus são o grupo de judeus que se consideram justificados pela própria condição ou pelo cumprimento literal e cego de algumas prescrições legais e, por isso, se separam e tomam distância dos mortais e comuns.
Diante dos fariseus, Jesus faz questão de afirmar com palavras e ações que Deus não se alegra com os puros e separados. Para ele, uma só daquelas criaturas vistas como perdidas, desorientadas, em situação de risco, à margem do sistema religioso e político judaico, vale mais que noventa e nove crentes auto-indulgentes e separados. É por isso que, como um verdadeiro e bom bastor, Jesus vai em busca dos últimos, sem cansar e sem levar em conta se merecem ou não seu amor.
O coração de Jesus bate forte pelos últimos da escala social, pelas pessoas arruinadas por causa de escolhas mal feitas ou de sistemas que excluem. Longe de cair na armadilha de uma generosidade ingênua, Deus escolhe muito bem aqueles a quem dirige seu amor preferencial e ocupam um lugar nobre no seu coração. Ele vai premurosamente ao encontro dos perdidos, reconduz os desgarrados, cura os machucados, fortalece os doentes e vigia atentamente os fortes.
“Alegrai-vos comigo!”
Deus nos livre da auto-justificação, do sentimento de superioridade moral e espiritual, do distanciamento e da indiferença em relação aos pobres e sofredores. É terrivelmente anti-cristã a presunção de que é a pureza das intenções e a nobreza das atividades espirituais desenvolvidas por religiosos/as e sacerdotes que alegra a Deus. Não é possível conjugar o sentimento de superioridade e a atitude de separação e desprezo dos outros com a fé em Jesus Cristo.
Mais que na celebração de cultos solenes, na elaboração de doutrinas eruditas e na obediência formal a leis minuciosas, a alegria de Deus consiste em buscar e proteger as pessoas indefesas e ameaçadas e preparar para elas uma mesa farta bem na cara dos inimigos que as perseguem implacavelmente. E isso na proporção de 1 por 99! Este é o caminho e a proposta de Jesus. Não deveria ser outro o caminho das Igrejas e de todos/as aqueles/as que crêem que Deus tem um coração.
Uma solenidade como esta do Sagrado Coração de Jesus restaura nossas forças de discípulos/as e missionários/as e nos guia pelo caminho certo. Com o rosto ungido pelo óleo perfumado que nos protege contra o calor ardente dos desertos, deixemos a igreja com o firme propósito de prosseguir a caminhada , certos/as de que a graça e a felicidade nos acompanham como guarda-costas. E alegres porque o Deus em quem acreditamos não é uma lei, mas um coração.
Pe. Itacir Brassiani msf

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