A MISSÃO DEVE EMPENHAR TUDO, TODOS/AS E SEMPRE.

A Igreja católica tomou consciência de que a missão faz parte do seu código genético e proclama que esta não é apenas uma das suas múltiplas tarefas, nem responsabilidade de apenas algumas pessoas. Em 2007, na Conferência de Aparecida, os bispos da América Latina e do Caribe colocaram a questão da missão no centro das preocupações da Igreja na América Latina e convocaram todos os seus membros a ser discípulos e missionários de Jesus Cristo. E, na sua mensagem para o Dia Mundial das Missões, o Papa Bento XVI diz que a missão da Igreja empenha tudo, todos e sempre. Nesta semana recordamos Santa Teresinha do Menino Jesus (+01.10.1897), André Soveral e seus companheiros mártires de Natal (03.10.1645), São Francisco de Assis (+04.10.1226) e São Benedito (+04.04.1589), mas a trágica memória dos 111 presidiários do Carandiru assassinados no dia 02.10.1992 grita que o Evangelho ainda não fecundou nossa cultura e, mais do que nunca, precisamos de gente que cuide da vinha do Senhor.
“Certo proprietário plantou uma vinha.”
Jesus toma do profeta Isaías a bela metáfora que compara o povo de Deus a uma plantação de uvas. “Cantarei em nome do meu amigo um canto de amor para a minha vinha.” Trata-se de uma vinha plantada com todo o capricho e cuidada com o maior carinho: terra bem preparada, mudas escolhidas, cerca de proteção, espaço para esmagar a uva e produzir o vinho... Deus tem com esta bela plantação uma relação de amor cantada em prosa e verso.
É daqui que parte a missão: de um Deus que ama de nforma apaixonada e incondicional, e se desdobra em cuidados para com seu povo. Por isso, quando falamos em missão não se trata de um desejo de impor doutrinas, ensinar conceitos ou corrigir comportamentos. Trata-se mais da necessidade de ajudar a manter vivo e palpável o cuidado de Deus pelas suas amadas criaturas, a fim de que elas transbordem de vida e de beleza.
Em princípio, na missão de cuidar da vinha do Senhor estão engajadas todas as pessoas que acreditam em Deus. Como nos lembra o Papa Bento XVI, o Evangelho não é um bem que nos pertence, mas um dom que recebemos e devemos passar adiante. E na Igreja, tudo e todos deve estar sempre em função disso. Mas Deus como que arrenda sua plantação a pessoas que ele chama especialmente, e espera frutos de direito e de justiça, ou seja: espera que sua vinha produza vida em abundância.
“Que mais poderia eu ter feito por meu vinhedo, que deixei de fazer?”
Na voz do profeta Isaías o canto apaixonado de Deus pela sua vinha se transforma num dolorido lamento. Diante dos frutos amargos que tanto cuidado produziu, ele pergunta: “Que mais poderia eu ter feito por meu vinhedo, que deixei de fazer? Eu esperava deles o direito, e produziram injustiça. Esperava justiça, e aí estão gritos de desespero.” O que teria acontecido? E por que teria contecido? É a mesma pergunta que se faz o semeador em cujos campos o joio cresceu em meio ao trigo...
Precisamos considerar que Deus cuida do seu jardim não de forma imediata, mas mediante as pessoas que nele acreditam. Sentimos a boa mão de Deus nos sustentando e orientando nas muitas e anônimas mãos que se nos estendem. E das pessoas que celebram publicamente sua resposta exclusiva ao convite para trabalhar na vinha de Deus temos o direito de esperar mais. Através do nosso cuidado solidário, muitos irmãos e irmãs experimentam o canto de amor de Deus pela sua querida vinha.
De forma semelhante, as injustiças produzidas, os gritos de desespero que se ouvem um pouco por todos os lados são provocados pela mediação da ação de pessoas e instituições humanas.Todos/as somos um pouco responsáveis - por pensamentos, palavras, atos e omissões -pela maior parte dos sofrimentos e das uvas amargas que a vinha produz. E há aqueles/as que se apropriam da vinha como se fossem sua e se recusam a prestar contas a quem quer que seja...
 “Mandou os seus servos aos lavradores para receber os frutos...”
Na perspectiva do evangelho de hoje, a missão não consiste propriamente em semear a mensagem do Reino de Deus, mas em ir aos arrendatários para recolher os frutos esperados. Como missionários/as somos enviados/as àqueles/as que foram investidos de autoridade ou ocupam posições de liderança política e religiosa para verificar se realmente se dedicam ao povo. A missão é junto àqueles que se apropriaram da vinha do Senhor. Uma missão que tem uma clara dimensão crítica e profética.
Esta missão é tão urgente quanto difícil e conflituosa. A parábola de Jesus menciona as agressões e espancamentos sofridos pelas pessoas enviadas. Quando os/as missionários/as não se contentam em propor doutrinas e celebrar ritos, correm o risco de serem pessoas indesejáveis e sofrerem violências nas mãos dos ‘malvadamente maus’ ou ‘canalhas’, como diz Mateus. A história remota e recente também registra as calúnias e torturas, as prisões e o martírio sofridos pelos profetas e testemunhas.
E vejamos bem: a missão não consiste em colher frutos para a instituição eclesial ou multiplicar suas agências, mas em cobrar o direito de Deus no mundo: a implantação da justiça para os pobres, o reconhecimento da dignidade dos desprezados, a primazia dos últimos, o cuidado e a bondade gratuita a todas as criaturas. Se estes frutos não forem encontrados, o Reino de Deus deve ser subtraído às elites e autoridades constituídas e entregue a outros que produzam esses frutos.
 “A pedra que os construtores rejeitaram, esta é que se tornou a pedra angular...”
Jesus é o missionário enviado pelo Pai, modelo e itinerário de todos/as os/s missionários/as. Ele não se negou a pagar o preço que a missão lhe exigiu: foi caluniado, desprezado, descartado e crucificado. Foi tratado como uma pedra que os pedreiros descartam porque consideram sem valor, inadequada e problemática na construção do mundo. Mas isso para ele não se configura numa tragédia. Pelo contrário, isso nos revela sua opção pessoal e o princípio norteador da sua vida.
Este princípio cardeal é dirigir-se aos rejeitados e excluídos para estabelecer, em nome do Pai que o envia, sua primazia e sua dignidade que jamais prescreve. Os grupos humanos e sociais que são aparentemente problemáticos e disfuncionais são a pedra-de-toque da construção de Deus. Mesmo que sejam pessoas que cometeram crimes, como aqueles 111 encarcerados executados impiedosamente em 1992 por soldados comandados por um assassino.
E esta é a perspectiva do trabalho missionário: subverter os esquemas, inverter as prioridades, afirmar os excluídos como indispensáveis no projeto de um mundo que se queira humano. É nisso que a Igreja precisa empenhar de forma contínua todos os seus membros, todos os seus esforços. A missão traça seu caminho de baixo para cima, da periferia para o centro, dos últimos para os primeiros. A parábola da pedra rejeitada e reccolocada por Deus no centro é a parábola da missão.
“Apresentem a Deus todas as necessidades de vocês.”
Escrevi estas notas no silêncio escuro de uma madrugada, num quarto de hospital, ao lado de três pessoas que lutavam contra o câncer. Naquela situação, tomei consciência de situaçosituaçãescubri que a missão pode ter também uma dimensão de presença silenciosa e solidária, de compaixão ativa e consoladora, de luta quase desesperada contra forças de morte, de confiança quase irracional na capacidade de reconstrução dos tênues fios da existência. Só Deus sabe o que foi feito destas pessoas...
Mas naquele clima ressoou forte e significativamente em mim a palavra de Paulo aos Filipenses: “Não se inquietem com nada... Pratiquem tudo o que vocês aprenderam e receberam de herança. Apresentem a Deus todas as necessidades de vocês.” E penso que este não é um convite à passividade, mas uma exortação à confiança que suscita a súplica repetida como refrão pelo Salmo: “Senhor, olha do céu e vê! Vem visitar tua vinha!”
Deus pai e mãe, cuidador e amante apaixonado da vinha: continua suscitando homens e mulheres conscientes da própria fragilidade e da força do teu amor, e envia-os para cuidar do teu povo. Que eles/as não desanimem quando forem tratados/as como pedras inúteis na construção dos muros. Que eles/as sintam a companhia inspiradora de Teresinha, André, Ambrósio, Mateus, Francisco, Benedito e tantos/as outros/as. E que esta comunidade que nasceu do lado aberto do teu filho empenhe todos os seus meios e todos os agentes na missão de testemunhar a comunhão fraterna, de servir aos pobres com alegria, de dialogar com todas as culturas e religiões e de anunciar a boa notícia aos pobres. Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf